Pular para o conteúdo principal

Naiá

Olhar Jaci à noite é para mulher corajosa, ainda mais se for moça jovem e bonita. Assim como qualquer moça que lê esse escrito aqui. Sabe, é que Jaci leva algumas delas quando quer e faz delas estrelas, todas em volta dele, brilhando.

Outro nome para Jaci é lua. Em outras aldeia nem sempre a gente vê as pessoas chamando a lua de Jaci, pois não sabem desse nome para a lua. E as moças não têm medo de serem levadas, pois não sabem desse gosto e acabam virando estrela sem saber o motivo.

Eu vou falar para vocês da Naiá, que é a indígena mais corajosa que eu conheci, e se bobear a que você já conheceu, por todos os tempos anteriores aos da colonização, pois daí por diante, a bravura é outra, e se faz perdurar até hoje, e fica melhor a gente ler nos relatos que nos contos e recontos populares, não é mesmo?

Naiá era das indígenas que ouviam a história dos anciãos e sentia um grande calafrio: “como será ser uma estrela?”, Jaci ela conhecia, pois ele não levava jovens crianças, só as moças. E as moças ficavam pelas aldeias todas receosas e à noite se punham reservadas e não cediam a olhar para cima, muito menos em noite que Jaci estava completo, isso era para se esconder.

Quando Naiá se fez moça, ficava na sua oca com suas companheiras e todas as vezes que ela falava em Jaci o medo se espalhava;

- Naiá é doida mesmo. Para com isso! – falavam em coro as companheiras.

- Só uma olhadinha, oque custa? Todos podem olhar e a gente não?

- Você quer virar estrela, é? – Anahi ameaçava.

- A gente não está aqui até agora? Vai falar que cuidado não teve? De fato, nem todas que olham são levadas por Jaci. – contrapunha Naiá, disposta a olhar para o céu.

- Vai dormir que é melhor! – Irani, um pouco mais velha e respeitada ordenava, ao que todas silenciavam. Coisa de pouco tempo, afinal, você acha que Naiá ia ficar ali de boas? Simplesmente não!

Naiá tinha a leveza de um inseto e deslizava pela oguassu despercebida. Achegou-se à porta e sentiu um arrepio imenso dos pés à cabeça e o calafrio com o ar fresco da calada fez com que travasse a coluna, sem conseguir respirar normalmente. Em sua cabeça ficava: “Jaci, Jaci, Jaci... vou olhar, vou olhar, vou olhar!”, Ela estava com muito medo, pois e se ela fosse recolhida, e se ela virasse estrela... ahhhh, seria muito bom!

Semana passada ela ficou pensando sobre ficar lá em cima só brilhando e olhando para baixo, a noite toda. Seria uma coisa muito boa... mas também ia sentir falta da mãe e do pai, de todos, ia sentir falta do banho de rio e de fazer as cestas, ela era umas das moças que melhor fazia cestas, isso porquê ela gostava de fazer.

De repente o vento ficou forte e cheiroso de mato novo, convidativo, Naiá começou a relaxar e lembrou que a Iacina, da aldeia próxima, que se gabara de admirar a Jaci todas as noites e não virar estrela, por ser moça arredia. “Iacina era tão bonita, Jaci devia levar ela. Se Jaci não levava a Iacina, eu é que não ia levar!”.

As mãos que estavam segurando firmes no batente da oguassu se crisparam, o rosto hesitante seguiu pelo mesmo rumo e tornou-se decidido, e então Naiá deu um passo e saiu para o campo aberto e foi tomando coragem para levantar a cabeça, ela podia sentir que Jaci estava lá pela sua linda luz, que nunca seria a mesma que ela poderia ter se ela mesma virasse uma estrela. Então fechou os olhos e foi levantando a cabeça para olhar para Jaci, e fê-lo delicadamente.

O aprazimento que teve foi tamanho que só seria compensado se ela virasse estrela, e então ela abriu os braços e esperou. Nada. Não aconteceu nada. Teve mais um pouco de vento, um pouco mais de cheiros, uns sons noturnos e Endi veio intercepta-la:

-O que está fazendo aí, Naiá? Vai pra dentro!

Ela correu chorando. Estava se sentindo humilhada. Chorou a noite e o dia todo. Não quis falar com ninguém.

À noite foi lá e encarou Jaci, que fez nada de novo.

Então ela resolveu que ia alcançar Jaci. Ninguém precisava falar para ela o que ela faria, ela podia fazer o que queria e então começou a correr, e Naiá era uma ótima corredora. Todas as noites ela corria para tentar alcançar Jaci, mas Jaci corria também, e sempre para lugares muito distantes, então Naiá passava a noite correndo e o dia voltando para sua aldeia. Ela conheceu muitos lugares.

Isso fez por mais algumas luas até Jaci sumir, o período de lua nova. Então Naiá ficou nas árvores por algumas noites, pensando. Como é que ela podia pegar Jaci para ela? Naquele dia ela estava na árvore olhando para a água do lago, Quando Jaci apareceu e ela o viu ali na água, pareceu muito mais fácil e resolveu: vou pegar.

Sua empreitada foi árdua, realmente muito difícil, visto que era o reflexo e por isso não conseguiria nada além de afogar-se.

Devido a toda a sua coragem e força, sua beleza intensa e dedicação, Jaci fez nascer no lugar de seu corpo uma flor com todas as suas características e tão especial quanto as estrelas, que só pode ser apreciada à noite, e nós a conhecemos hoje por vitória-régia.

 Laura Lucy Dias

23/8/2020



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poema unicórnio

 Se eu paro A paralisia é um sinal Mas o diagnóstico É possível  Da passividade  Do profissional E não de mim Se há veneno Ou é psicossomático O corpo É social Posso falar Mas a audição É real ou virtual? A minha ação não  Faz mais que  condição  E o planejamento Condiz com a prática E a ática  Reverberação dissociativa Literária precisa de uma Relação interlocutiva Ou não Não mais Não mais Não mais O resultado é solitude É solidão É produto  Não é reduzido É produto Pro du to A di ver são  A ca bou 16/4/2021

Poema de sete outras faces

Quando nasci um anjo torto desses que vivem na sombra disse: vai, Carlos, ser gauche na vida Eu olhei em volta, mas eu estava sozinha, Então, nadinha eu entendi. As casas espiam os moleques que batem a bola no meu portão, A tarde talvez fosse azul se eu não tivesse me tornado a bruxa do setenta e um O monotrilho passa cheio de pernas pernas brancas, pretas, amarelas é no que acredito, pois é muito rápido e já não enxergo bem sem óculos! Passando dos quarenta, é ladeira abaixo! A mulher atrás do bigode é sisuda, complacente, tem tiques fala mais do que deve tem poucos, raros amigos A mulher atrás dos óculos e do bigode  Meu Deus, porque me abandonaste? Se sabias que eu não era Deus Se sabia que eu era fraca Dívida, dívida, vasta dívida se eu não estivesse lívida passaria de mera rima a uma solução dívida, dívida, vasta dívida glórias ao crédito no meu cartão! Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse gin com TNT da lata branca Botam-me pra dançar até com o diabo!   18/4/2023

Noção de tempo

Sua vida, que não parecia   Que chegaria tão longe, chegou até aqui,  E sem manual.  Sua vinda, que parecia mais como uma lista  Do que você não devia… Uma constante luta.  Está hoje tal qual:  O partido é você.  A busca, a definição,  O rótulo, a religião,  A completude, o sim e o não...  Alma, sentimento, coração, buscando autorização. O meu, o mim, o de mim,  O para mim, o peso, posse,  Permissividade e o assim,   E se, e se, e se fosse...  Hoje, mais que nunca  Na completude da subjetividade  Na relatividade  Das suas escolhas Que o que realmente trunca  São os outros e suas bolhas  Se você quiser estourá-las.  Habitá-las,  Coelha-las.   7/4/2019