A história que eu vou contar aqui tem muitas camadas, e é tão ridícula que eu pensei muito sobre contá-la, não devido a história em si, e sim pelo quanto uma coisa irrisória pode mudar tanto a história de uma pessoa tão insignificante quanto eu. Lembre-se que isto aconteceu na década de 1990.
Estava eu, lépida e faceira em minha tenra quinta série
(equivalente a sexta série na data de 2020), quando a professora de português, de nome Hilda, fez um anúncio à toda a sala: Vamos fazer uma prova diferente desta vez, vocês
terão que ler um livro para responder a prova, o livro se chama "O pequeno
príncipe"; e passou data de longo prazo, que eu anotei, e pensei com
desespero de causa perdida: Ok, vamos fazer a prova na raça, pois nunca li um
livro inteiro, afinal, quem faz isso? E meu pai não vai comprar mesmo, ele
nunca compra nada, se eu pedir, já viu! Ainda mais um livro enorme assim!
Gente, eu juro, na minha memória, todas as crianças que estavam
com o livro tinham um livro de mais de trezentas páginas!
Para mim, uma garotinha apática, que só podia ficar quieta em
todas as ocasiões e nada mais, pedir o livro emprestado só me passa à mente
agora que eu escrevo... ! A prova veio, eu me esforcei para responder com toda
a criatividade e aquilo que eu achava ser o mais coerente possível com as
questões propostas dentro da minha ingênua imaginaçãozinha, mas não passava de
chute atrás de chute!
Ah, mas quando o boletim veio, a professora o entregava de
carteira em carteira, e na hora que ela ia entregar o meu, ela parou e deu uma
leve olhada nos meus olhos, me deu o boletim, segurou-o e eu também, ela se conteve por alguns segundos e então acabou por
entregar... Quando eu abri o boletim... foi o choque mais tremendo da
minha vidinha! A MINHA PRIMEIRA NOTA VERMELHA! Eu abaixei a cabeça, virei-a de
lado e deitei-a na carteira, e chorei copiosamente, sem fazer barulho, eram rios pelos olhos no engasgo do corpo.
Estava claro que a professora sabia que eu não tinha o livro, e
que eu tinha péssima experiência social, e não houve monitoramento sobre isso
em uma roda de conversa. Os tempos também eram outros e... como eu era
reprimida, até para chorar foi uma vergonha, lágrima escorrendo, com a cabeça
estatelada de lado na mesa e os braços largados para baixo, pendidos e o
boletim, que era uma carteirinha daquelas azuis do Estado de São Paulo, na mão
direita. Siiiim, até hoje isso dói muito!
E ainda dá para piorar, pois no bimestre seguinte: OUTRA PROVA, o
livro era “O mistério do cinco estrelas" da série vaga-lume. Entrei em
parafuso e devo ter me esguelhado e ido chorar no corredor azul da escola, sala
12 onde hoje eu voto, pois não sei como naquele mesmo dia fui parar na secretaria da escola, assessorada por
uma funcionária que surgiu com uma chave mágica de uma sala misteriosa que estava sempre
trancada: "Não conte a ninguém!" me orientou, e lá haviam prateleiras de ferro e tortas com livros
empoeirados nas quais ela procurou, encontrou e me fez o empréstimo a jura de perseguição
e morte do tal livro. E foi assim que eu tive o meu primeiro contato com a
biblioteca e com livros policiais, de mistério e suspense (foi mal aê mãe!)
Quanto ao pequeno príncipe, nossa saga não acabara por ali! Eu o
odiei por anos a fio! Entrava nas livrarias e deixava cair "sem
querer" para pisar em cima e rir maliciosamente "muahahahaha!"! Até que em meu primeiro ano na carreira de magistério da Prefeitura de São
Paulo, uma amiga minha veio toda feliz com seu caderno da Tilibra da personagem:
Olha que lindo!; dava para ver o buraco do rim que lhe faltava, e eu logo
arrematei: Eu não gosto!; ela quase chorou. (beijos Gi!)
Foi então que me dei conta de que aos vinte e oito anos eu era uma intolerante vil que não dava o braço a torcer, pois que iria ler o livro "O pequeno príncipe" e desgostar com maior razão! Comprei um exemplar com mais raiva ainda, pois o bicho saiu trinta contos na época. Antes de comprar pesquisem, pois ele varia muito de preço, é como o dólar!
Cheguei em casa e abri para começar a leitura, e três horas depois o fechei às lágrimas... tenho coleção, uma tatuagem, faço trabalho de iniciação de projeto de aluno leitor (quem não gosta de ler: eu transformo em leitor de fruição via "O pequeno príncipe") e ainda faço projeto sazonal interdisciplinar com o livro na escola). SÓ PORQUE TIREI NOTA D NA QUINTA SÉRIE, obrigada professora Hilda! Revisando a crônica em 19/9/2024, hoje eu leio em média 80 livros no ano, graças a você!
Pois é... e se tivessem me dito o óbvio? Que eu podia pegar o
livro emprestado na biblioteca?
E se tivessem me dito o óbvio? Para pedir para meu pai, ele não deu? Pede para a mãe, ela não deu? Pede para a vó, ela não deu? Pede para a madrinha, ela não deu? Pede para o vereador, ele não deu? Em algum momento alguém poderia me dar a ideia de emprestar ou a da biblioteca. Porém, eu fui ensinada a ficar sempre quietinha e a ser meiguinha, pois assim eu era melhor.
E vejo as minhas alunas e alunos sendo assim hoje: eu queria desenhar, mas não
tem lápis preto e nem lápis de cor, "você já pediu para seu pai?" , "Ele
não vai dar", "ele vai brigar", elas nem tentam, então eu
incentivo a pedir, e dá certo, a conversa rola, quando dá o pai compra, quando
não dá o pai conversa. A criança muda de perspectiva.
Precisamos dizer o óbvio para nossas crianças "existem
bibliotecas", "conversem comigo", "eu não te odeio", e
parar de viver uma vida de apenas dar ordens, ditar regras, pedir silêncios.
Conversar, tocar com palavras, dividir experiências, ouvir, dar espaços
diversos e tocar com carinho de mãe e pai mesmo, para que haja o espaço da
infância e da adolescência, para que elas saibam ser e não vivam apenas se
restringindo aos espaços de experimentações negativas, pois é assim que elas
tiram as suas primeiras notas vermelhas. Às vezes o óbvio precisa ser dito.

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