O meu quarto de rapaz solteiro era bem no alto; um mirante isolado, por cima do terceiro andar de uma grande e sombria casa de pensão da rua do Riachuelo com uma larga varanda de duas portas, aberta contra o nascente, e meia dúzia de janelas desafrontadas, que davam para os outros pontos, dominando os telhados da vizinhança.
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Um pobre quarto, mas uma vista esplêndida! Da varanda, em
que eu tinha as minhas queridas violetas, as minhas begônias e os meus
tinhorões, únicos companheiros animados daquele meu isolamento e daquela minha
triste vida de escritor, descortinava-se amplamente, nas encantadoras nuanças
da perspectiva, uma grande parte da cidade, que se estendia por ali a fora, com
a sua pitoresca acumulação de árvores e telhados, palmeiras e chaminés, torres
de igreja e perfis de montanhas tortuosas, donde o sol através da atmosfera,
tirava, nos seus sonhos dourados, os mais belos efeitos de luz. Os morros, mais
perto, mais longe, erguiam-se alegres e verdejantes, ponteados de casinhas
brancas, e lá se iam desdobrando, a fazer-se cada vez mais azuis e vaporosos,
até que se perdiam de todo, muito além, nos segredos do horizonte, confundidos
com as nuvens, numa só coloração de tintas ideais e castas.
Meu prazer era trabalhar aí, de manhã bem cedo, depois do
café, olhando tudo aquilo pelas janelas abertas defronte da minha velha e
singela mesa de carvalho, bebendo pelos olhos a alma dessa natureza inocente e
namoradora, que me sorria, sem fatigar-me jamais o espírito, com a sua graça
ingênua e com sua virgindade sensual.
E ninguém me viesse falar em quadros e estatuetas; não!
queria as paredes nuas, totalmente nuas, e os móveis sem adornos, porque a arte
me parecia mesquinha e banal em confronto com aquela fascinadora realidade, tão
simples, tão despretensiosa, mas tão rica e tão completa.
O único desenho que eu conservava à vista, pendurado à
cabeceira da cama, era um retrato de LAURA, minha noiva prometida, e esse feito por mim mesmo, a pastel,
representando-a com a roupa de andar em casa, o pescoço nu e o cabelo preso ao
alto da cabeça por um laço de fita cor-de-rosa.
I
Quase nunca trabalhava à noite; às vezes, porém, quando me
sucedia acordar fora de horas, sem vontade de continuar a dormir, ia para a
mesa e esperava lendo ou escrevendo que amanhecesse.
Uma ocasião acordei assim, mas sem consciência de nada, como
se viesse de um desses longos sonos de doente a decidir; desses profundos e
silenciosos, em que não há sonhos, e dos quais, ou se desperta vitorioso para
entrar em ampla convalescença, ou se sai apenas um instante para mergulhar logo
nesse outro sono, ainda mais profundo, donde nunca mais se volta.
Olhei em torno de mim, admirado do longo espaço que me
separava da vida e, logo que me senti mais senhor das minhas faculdades,
estranhei não perceber o dia através das cortinas do quarto, c não ouvir, como
de costume, pipilarem as cambachirras defronte das janelas por cima dos
telhados.
- É que naturalmente ainda não amanheceu. Também não deve tardar
muito... calculei, saltando da cama e enfiando o roupão de banho, disposto a
esperar sua alteza o sol, assentado à varanda a fumar um cigarro.
Entretanto, cousa singular! parecia-me ter dormido em
demasia; ter dormido muito mais da minha conta habitual. Sentia-me
estranhamente farto de sono; tinha a impressão lassa de quem passou da sua hora
de acordar e foi entrando, a dormir pelo dia e pela tarde, como só nos acontece
depois de uma grande extenuação nervosa ou tendo anteriormente perdido muitas noites
seguidas.
Ora, comigo não havia razão para semelhante cousa, porque,
justamente naqueles últimos tempos, desde que estava noivo, recolhia-me sempre
cedo e cedo me deitava. Ainda na véspera, lembro-me bem, depois do jantar saíra
apenas a dar um pequeno passeio, fizera à família de LAURA a minha visita de todos os dias, e às dez
horas já estava de volta, estendido na cama, com um livro aberto sobre o peito,
a bocejar. Não passariam de onze e meia quando peguei no sono.
Sim! não havia dúvida que era bem singular não ter
amanhecido!... pensei, indo abrir uma das janelas da varanda.
Qual não foi, porém, a minha decepção quando, interrogando o
nascente, dei com ele ainda completamente fechado e negro, e, abaixando o
olhar, vi a cidade afogada em trevas e sucumbida no mais profundo silêncio!
- Oh! Era singular, muito singular!
No céu as estrelas pareciam amortecidas, de um bruxulear
difuso e pálido; nas ruas os lampiões mal se acusavam por longas reticências de
uma luz deslavada e triste. Nenhum operário passava para o trabalho; não se
ouvia o cantarolar de um ébrio, o rodar de um carro, nem o ladrar de um cão.
Singular! muito singular!
Acendi a veia e corri ao meu relógio de algibeira. Marcava
meia-noite. Levei-o ao ouvido, com avidez de quem consulta o coração de um
moribundo; já não pulsava: tinha esgotado toda a corda. Fi-lo começar a
trabalhar de novo, mas as suas pulsações eram tão fracas, que só com extrema
dificuldade conseguia eu distingui-las.
- É singular! muito singular! repetia, calculando que, se o
relógio esgotara toda a corda, era porque eu então havia dormido muito mais
ainda do que supunha! eu então atravessara um dia inteiro sem acordar e entrara
do mesmo modo pela noite seguinte.
Mas, afinal que horas seriam?... Tornei à varanda, para
consultar de novo aquela estranha noite, em que as estrelas desmaiavam antes de
chegar a aurora. E a noite nada me respondeu, fechada no seu egoísmo surdo e
tenebroso.
Que horas seriam?... Se eu ouvisse algum relógio da
vizinhança!... Ouvir?... Mas se em torno de
mim tudo parecia entorpecido e morto?...
E veio-me a dúvida de que eu tivesse perdido a faculdade de
ouvir durante aquele maldito sono de tantas horas; fulminado por esta idéia,
precipitei-me sobre o tímpano da mesa e vibrei-o com toda a força.
O som fez-se, porém, abafado e lento, como se lutasse com
grande resistência para vencer o
peso do ar.
E só então notei que a luz da vela, à semelhança do som do
tímpano, também não era intensa e clara como de ordinário e parecia oprimida
por uma atmosfera de catacumba.
Que significaria isto?... que estranho cataclismo abalaria o
mundo?... que teria acontecido de tão transcendente durante aquela minha
ausência da vida, para que eu, à volta, viesse encontrar o som e a luz, as duas
expressões mais impressionadoras do mundo físico, assim trôpegas e assim
vacilantes, nem que toda a natureza envelhecesse maravilhosamente enquanto eu
tinha os olhos fechados e o cérebro em repouso?!...
- Ilusão minha, com certeza! que louca és tu, minha pobre
fantasia! Daqui a nada estará amanhecendo, e todos estes teus caprichos, teus
ou da noite, essa outra doida, desaparecerão aos primeiros raios do sol. O
melhor é trabalharmos! Sinto-me até bem disposto para escrever! trabalhemos,
que daqui a pouco tudo reviverá como nos outros dias! de novo os vales e as montanhas
se farão esmeraldinas e alegres; e o céu transbordará da sua refulgente concha
de turquesa a opulência das cores e das luzes; e de novo ondulará no espaço a
música dos ventos; e as aves acordarão as rosas dos campos com os seus
melodiosos duetos de amor! Trabalhemos! Trabalhemos!
Acendi mais duas velas, porque só com a primeira quase que
me era impossível enxergar; arranjei-me ao lavatório; fiz uma xícara de café
bem forte, tomei-a, e fui para a mesa de trabalho.
II
Daí a um instante, vergado defronte do tinteiro, com o
cigarro fumegando entre os dedos, não pensava absolutamente em mais nada, senão
no que o bico da minha pena ia desfiando caprichoso do meu cérebro para lançar,
linha a linha, sobre o papel.
Estava de veia, com efeito! As primeiras folhas encheram-se
logo. Minha mão, a princípio lenta, começou, pouco a pouco, a fazer-se nervosa,
a não querer parar, e afinal abriu a correr, a correr, cada vez mais depressa;
disparando por fim às cegas, como um cavalo que se esquenta e se inflama na
vertigem do galope. Depois, tal febre de concepção se apoderou de mim, que perdi
a consciência de tudo e deixei-me arrebatar por ela, arquejante e sem fôlego,
num vôo febril, num arranco violento, que me levava de rastros pelo ideal aos
tropeções com as minhas doidas fantasias de poeta.
E páginas e páginas se sucederam. E as idéias, que nem um
bando de demônios, vinham-me em borbotão, devorando-se umas às outras, num
delírio de chegar primeiro; e as frases e as imagens acudiam-me como
relâmpagos, fuzilando, já prontas e armadas da cabeça aos pés. E eu, sem tempo
de molhar a pena, nem tempo de desviar os olhos do campo da peleja, ia arremessando
para trás de mim, uma após outra, as tiras escritas, suando, arfando, sucumbindo
nas garras daquele feroz inimigo que me aniquilava. E lutei! e lutei! e lutei!
De repente acordo desta vertigem, como se voltasse de um
pesadelo estonteado, com o sobressalto de quem, por uma briga de momento, se
esquece do grande perigo que o espera. Dei um salto da cadeira; varri inquieto
o olhar em derredor. Ao lado da minha mesa havia um monte de folhas de papel
cobertas de tinta; as velas bruxuleavam a extinguir-se e o meu cinzeiro estava
pejado de pontas de cigarro.
Oh! muitas horas deviam ter decorrido durante essa minha
ausência, na qual o sono agora não fora cúmplice. Parecia-me impossível haver
trabalhado tanto, sem dar o menor acordo do que se passava em torno de mim. Corri
à janela.
Meu Deus! o nascente continuava fechado e negro; a cidade
deserta e muda. As estrelas tinham empalidecido ainda mais, e as luzes dos
lampiões transpareciam apenas, através da espessura da noite, como sinistros
olhos que me piscavam da treva.
Meu Deus! meu Deus, que teria acontecido?!... Acendi novas
velas, e notei que as suas chamas eram mais lívidas que o fogo-fátuo das sepulturas.
Conchei a mão contra o ouvido e fiquei longo tempo a esperar inutilmente que do
profundo e gelado silêncio lá de fora me viesse um sinal de vida. Nada! Nada!
Fui à varanda; apalpei as minhas queridas plantas; estavam
fanadas, e as suas tristes folhas pendiam molemente para fora dos vasos, como
embambecidos membros de um cadáver ainda quente. Debrucei-me sobre as minhas
estremecidas violetas e procurei respirar-lhes a alma embalsamada. Já não
tinham perfume!
Atônito e ansioso volvi os olhos para o espaço. As estrelas,
já sem contornos, derramavam-se na tinta negra do céu, como indecisas nódoas
luminosas que fugiam lentamente. Meu Deus! meu Deus, que iria acontecer ainda?
Voltei ao quarto e consultei o relógio. Marcava dez horas. Oh!
Pois já dez horas se tinham passado depois que eu abrira os olhos?... Por que
então não amanhecera em todo esse tempo!... Teria eu enlouquecido?... Já
trêmulo, apanhei do chão as folhas de papel, uma por uma; eram muitas, muitas!
E por melhor esforço que fizesse, não conseguia lembrar-me do que eu próprio
nelas escrevera. Apalpei as fontes; latejavam. Passei as mãos pelos olhos,
depois consultei o coração; batia forte.
E só então notei que estava com muita fome e estava com
muita sede. Tomei a bilha d'água e esgotei-a de uma assentada. Assanhou-se-me a
fome. Abri todas as janelas do quarto, em seguida a porta, e chamei pelo
criado. Mas a minha voz, apesar do esforço que fiz para gritar, saía frouxa e
abafada, quase indistinguível. Ninguém me respondeu, nem mesmo o eco.
Meu Deus! Meu Deus! E um violento calefrio percorreu-me o
corpo. Principiei a ter medo de tudo; principiei a não querer saber o que se
tinha passado em torno de mim durante aquele maldito sono traiçoeiro; desejei
não pensar, não sentir, não ter consciência de nada. O meu cérebro, todavia,
continuava a trabalhar com a precisão do meu relógio, que ia desfiando os
segundos inalteravelmente, enchendo minutos e formando horas.
E o céu era cada vez mais negro, e as estrelas cada vez mais
apagadas, como derradeiros e tristes lampejos de uma pobre natureza que morre! Meu
Deus! meu Deus! o que seria?
Enchi-me de coragem; tomei uma das velas e, com mil
precauções para impedir que ela se apagasse, desci o primeiro lance de escadas.
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