Antracite é uma ode a Twin Peaks e eu posso provar, ou quase

Acabei de assistir à nova série Antracite em duas sentadas (16-17/04/2024), e achei a linguagem bastante fluida e divertida, conectada e moderna, e não deixou a desejar no quesito de homenagem ao grande evento que foi Twin Peaks desde a década de 1990. Vou tentar estabelecer algumas relações aqui para nos divertirmos um pouco. Para começar, é preciso fazer algumas revelações, ou seja, haverá SPOILERS para ambas as produções, portanto, vá com cuidado e boa sorte.

Antracite ocorre em uma cidade chamada Léviona, onde os habitantes a chamam de aldeia. Assim como Twin Peaks, Léviona tem uma placa icônica em sua entrada que diz "Paraíso na Terra". Essa placa, assim como a famosa placa de Twin Peaks, destaca a importância do ambiente, que é mais significativo do que parece. Ambas as produções usam o cenário como metáfora, uma espécie de cebola que, à primeira vista, parece bonita e simples, mas à medida que você vai retirando as camadas, ela fica mais ácida, putrefata e amarga, fazendo você chorar. 

Temos também lugares que se repetem, como o quarto de Laura Palmer, o quarto da mãe de Jaro fica no topo da escada, ao lado direito como o da srt Palmer, a janela do quarto no mesmo lado, mesmo que a cama e o espelho não estejam dispostos do mesmo modo que a de Laura, para fechar encontramos o diário e o walkman dela em um lugar adverso, porém, dentro do quarto. Não fica só esse elemento, temos também a questão do nome que revela o mal, aquele elemento menor da trama, que enquanto é Alone, revelando a mais completa condição da menina, também é Enola, o contrário, aquele que a acompanha, que faz companhia, e são tanto a solidão dela e sua perdição. Na obra de Lynch as duplicidades, as ambiguidades e os doppelgangers são elementos intrínsecos.

A narrativa inicial de Antracite gira em torno de uma garota morta e do carvão, que são elementos distintos que fazem referência a Twin Peaks, tanto à rede de tráfico de garotas quanto aos Queimados, que estão no cerne dos postos de gasolina da cidade à beira do Canadá. O carvão, em Antracite, serve como elemento de transição entre os mundos, diferentemente do óleo de motor em Twin Peaks. A narrativa também permeia os anos 1990 e se relaciona diretamente com a seita que estava lá cometendo diversas intervenções, e vamos descobrindo camadas, das mais visíveis à surpreendente, que subverte o que é resolvido em Twin Peaks, porém, mesmo que se subverta, mantém-se a questão mais fundamental e que é relacionada à mitologia mais comum de qualquer civilização: o incesto.

Apesar de não encontrarmos uma black lodge em Antracite, temos a referência direta quando Ida está delirando e tudo está no sonho andando em seu tempo real, enquanto que a fala é ao contrário, tal qual uma”rebobinação”, remetendo a ideia da fita que ela tinha assistido, mas não se engane, em Twin Peaks, David Lynch estabeleceu um elemento dentro do Black Lodge (um dos universos dentro de Twin Peaks, mas não é exatamente físico, e você pode acessar de várias formas, uma delas é com o óleo de motor queimado - os queimados) que levou seus atores para além do imaginável, eles tinham que atuar falando de trás para frente, falando ao contrário, para depois exibirem-se as cenas ao contrário, o efeito onírico disso é um dilema surreal fantástico! Sério, você precisa assistir Twin Peaks.

Os personagens de Antracite são complexos e multidimensionais, assim como em Twin Peaks. A protagonista, Ida, vai para Léviona procurar o pai, que desapareceu na cidade, e ela tem certeza de que ele está vivo. Sua jornada é o fio condutor que conecta a narrativa com Twin Peaks. O personagem de Ida representa o aspecto "breguice", assim como a tonalidade “rosa calcinha” da Laura Palmer, por exemplo. Ela tem o cabelo com um corte extremamente chamativo e com tonalidades de princesa, ao qual depois descobrimos que é uma peruca. Laura Palmer tem um cabelo bem armado, muito tendencioso, só vendo para crer.

Ida e Giovanna

Ida usa uma jaqueta cor de rosa com grandes estrelas, calças legging estampadas estrondosas, uma bota de patas de urso bem chamativas e canta sempre a mesma música, repetidamente, sem parar, em todos os momentos que pode, música que remete aos anos oitenta, tudo para climatizar a cybergirl. Laura Palmer era a menina princesinha que tinha tudo, porém, dentro de si mantinha um lado sombrio secreto, Ida é assim também, mas não vemos o lado sombrio que se coloca, pois o que é sombrio nela, e ficam mostrando por toda a narrativa, não é a questão da leucemia, é outra coisa, é o fato de ser irmã de Jaro, tanto quanto a sua tia! É o fato de ela ter se deitado com ele, sem saber! É o fato de estar a vida toda sem saber de nada disso, visto que ela esteve fora daquele lugar, e logo que ali retornou, tudo que aconteceu revelou o seu lado sombrio.

Laura Palmer e seu diário

A questão da paternidade é um tema central em ambas as produções. Em Antracite, Solal assume o papel de pai responsável, enquanto Jaro, pai de Malia, deseja ser um pai presente e busca convencer a ex-namorada disso, pede para ela deixar ele participar, porém, apenas Malia a convence disso, mostrando que deseja manter a relação com o pai, pois sente a falta de Jaro. Mesmo que um pouco apagado, temos o marido da Giovanna, o policial, que apesar de ser um marido que ninguém desejaria ter, é um pai presente e que estava ali, fértil (lembre-se do recente abroto de Giovanna)e provendo. Para mais, no que se revela um escândalo narrativo, a meu ver de cunho Lynchiano, encontramos no Caleb diversas figuras de pai: uma promessa de pai, um pai de todos os discípulos, um pai estuprador, um pai que não se concretiza com a mãe de Jaro, por fim o pai dos filhos de Valerie, não um pai desejoso, mas um pai estuprado, que teve sua semente arrancada do seu seio por uma Hera escandalosa, que o amarrou à cama e à moda da mais pura tortura o possuiu, ela como um maldito Bob.

A questão de Ida e o FBI tem para Twin Peaks o que podemos pensar o fator de uma linguagem mais popular e jovem, em vez de usar os elementos mais formais e tradicionais de investigação que poderiam criar um clima engessado, em Antracite Ida tem o papel de Cooper e Scully, e a internet tem o papel de Diana e Molder, levando a investigação para um aspecto mais civil, implementando as especialidades que Ida precisasse e que o FBI poderia disponibilizar para um agente e um civil não teria, e que na época de Cooper era feito pela solicitação à Diane, através das gravações enviadas pelo correio. Como estarão as tecnologias daqui a  trinta anos? Como serão os Coopers daqui para lá?

Cooper gravando para Diane à caminho de Twin Peaks no Piloto

É preciso ressaltar que a seita da série Antracite existiu, pasme! Até mesmo o suicidio em massa ocorreu, mas os demais elementos, aparentemente são todos fictícios, portanto, Antracite e Twin Peaks compartilham muitos elementos temáticos, e ambas as produções são uma forma de entretenimento que explora as complexidades da condição humana. O cenário, os personagens e os temas contribuem para uma narrativa rica que mantém o espectador envolvido e pensando.

 18/04/2024